sábado, 21 de julho de 2018

Não é mole ser mulher chinesa

A desigualdade de gêneros é algo presente em todo o mundo e seu grau varia de país para país. Para entender a situação da mulher chinesa em Hong Kong, e na China em geral, é preciso conhecer alguns aspectos culturais e políticos.
Ouve-se muito falar que chineses preferem meninos a meninas, mas não se sabe muito bem o porquê. Antes de vir para Hong Kong eu pensava que isso não acontecia mais, que era algo do passado. Infelizmente, vi que não é bem assim. Diversas amigas aqui me relataram casos que provam que os pais preferem filho homem. Na cultura chinesa, a filha é vista como uma despesa, pois quando ela se casar, não continuará o nome da família (a esposa não precisa adotar o nome do marido mas o filho que ela tiver não levará seu sobrenome, mas só o do pai). Além disso, é o filho homem que tem obrigação de cuidar dos pais quando idosos e até mesmo depois de falecidos (leia sobre a tradição de oferendas aos ancestrais falecidos aqui). As filhas ficam responsáveis por cuidar da família do marido. A preferência ficou ainda mais visível devido à política do filho único, que limitava a maioria dos casais chineses a ter somente uma criança.

Políticas públicas

Antes de mais nada, é preciso fazer algumas ressalvas: em Hong Kong não valia a política do filho único, porque a cidade pertencia à Inglaterra quando a política entrou em vigor, há cerca de 40 anos. Além disso, nesse ano de 2017, essa política foi revisada e os casais chineses agora podem ter até dois filhos. Mesmo assim, é interessante conhecer alguns aspectos dessa política que nos ajudam a entender a situação da mulher chinesa.
Antes da flexibilização da política, se o casal quisesse ter uma segunda criança, teria que pagar uma multa e essa segunda criança teria o acesso dificultado a alguns direitos. Por exemplo: não teria direito à escola pública (e as particulares têm custo bastante acima da média). Além disso, a mulher com emprego público que tivesse uma segunda criança, perdia o emprego. Se fosse o pai que trabalhasse como servidor público não. Já se ambos fossem funcionários públicos, um perderia o emprego sendo este, geralmente, a mulher. Essa situação já permite visualizar que a desigualdade de gênero na China começa com a própria lei.
Uma exceção para a regra do filho único era para casais que moravam na zona rural. Eles poderiam ter uma segunda criança, caso a primeira fosse menina.
O aborto é legalizado e realizado em hospital público. Se for uma segunda gravidez então, a mulher é encorajada a fazer o aborto.
Juntando a cultura de preferir menino, a política do filho único e a facilidade em abortar, o governo temia que muitos casais abortassem caso o ultrassom revelasse que estavam esperando por uma menina. Por isso, os médicos chineses são proibidos por lei de revelar o sexo do feto ao casal. Isso na teoria porque, na prática, aqueles que realmente querem menino dão um jeito: subornam o médico ou vêm para Hong Kong ou outro lugar para saber o sexo do bebê. Uma amiga me contou de um caso em que uma mulher fez 12 abortos até engravidar de um menino.
Outro aspecto da política pública que dificulta a vidas das mulheres é a situação da mãe solteira. Se uma mulher não casada tem filho, a criança não tem direitos, como o de frequentar escola pública. A mãe tem ainda que pagar uma multa (chamada de taxa de compensação social). Pesquisando em inglês não consegui achar o valor exato dessa multa mas minhas amigas chinesas estimam que seja em torno de 2500 a 4000 dólares americanos.

Pequenos imperadores e mulheres solteiras

Toda essa situação origina outro fenômeno cultural: os pequenos imperadores. Os filhos únicos e sem primos, são o centro de atenção da família toda: dos pais e dos 4 avós. Quando são meninos, a família os trata como preciosidades que não podem ser contrariadas ou colocadas em situações “de risco”. Assim, os meninos crescem se achando especiais e aqueles mais espertinhos aprendem a manipular toda essa atenção, ditando as regras da família como pequenos imperadores. No metrô em Hong Kong vejo vários adultos cedendo lugar aos meninos, mesmo em detrimento de um idoso. Aliás, se um avô ou avó entra com o neto no metrô e tem um assento vazio, coloca o menino para sentar e fica em pé. Enquanto isso, as meninas são educadas para servir e obedecer. Esse tratamento diferenciado para meninas e meninos repercute na vida adulta. O que percebo das pessoas que conheci aqui, claro que em linhas muito gerais, é que os homens têm mais auto confiança e as mulheres são mais tímidas e inseguras.
Um dos aspectos culturais que acho mais cruel é a pressão social para a mulher se casar. Existe um termo aqui para as mulheres solteiras, que equivale em português a “resto” ou “sobra”(leftover em inglês). Tudo bem que no Brasil (e em outros países) temos também um termo pejorativo: solteirona. No entanto, na China a mulher começa a ser considerada “sobra” quando está acima de… 27 anos! Por isso, é comum mulheres se casarem rápido, por pavor de ficarem solteiras, às vezes sem nem gostar muito do namorado.
Na cidade chinesa de Shangai, há inclusive um mercado de casamento. Os pais preocupados com a situação de filhos e filhas solteiro/as, vão aos domingos para O Parque do Povo, levando cartazes com informações sobre os filhos. Além de fotos, há dados como peso, altura, salário e signo do horóscopo chinês. Os pais andam e conversam com os pais daqueles que consideram candidatos adequados. Detalhe: isso é feito muitas vezes à revelia dos filhos, que não aceitam e não se encontram com os “pretendentes”.

A vida de uma mulher chinesa

Compartilho a história de uma amiga chinesa, que aqui chamarei de Lin. Quando ela nasceu, a avó paterna ficou revoltada porque ela era menina e o filho não poderia ter outra criança. Isso porque, mesmo se quisessem pagar a multa imposta a um segundo filho, seu pai e sua mãe eram funcionários públicos e não queriam perder o emprego. Durante os primeiros anos de vida da Lin, sua avó não quis nem saber da neta. Agora, já beirando os 30 anos de idade, os pais a pressionam para se casar. Lin está terminando o doutorado em Hong Kong e toda vez que vai à sua cidade natal, os pais insistem para que ela se case. Eles dizem que passam vergonha e se sentem humilhados perante os amigos quando eles perguntam se ela já se casou. Esse assunto é tema de muita discussão entre Lin e seus pais. Esse ano disseram que é para ela se formar, voltar à cidade natal e arrumar um emprego lá e se casar. Aí eles dão uma casa para ela e o esposo e quando forem idosos vão morar com eles. Quando ela disse que não são eles que decidem o futuro dela, eles a chamaram de ingrata, sem coração e malvada. A situação chegou a um ponto em que a relação entre filha e pais azedou e ela está até evitando falar com eles. Lin me disse que seria mais fácil ceder, mas que ela deseja “apenas“ se casar com alguém que ame e este alguém ainda não apareceu.

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