sábado, 21 de julho de 2018

As filhas da China/Ainda matam meninas na China?

Quando estava no Ensino Médio, tinha uma professora de Geografia que falava muito da China: “a economia que mais cresce no mundo”, “o país onde se matam bebês meninas”. Essa última frase ecoou dentro de mim por muito tempo. Como podem matar bebês por serem meninas? Para mim, que sempre quis ter uma menina era inaceitável. Levei isso comigo por anos e, quando soube que viria morar aqui, a palavra China era sempre seguida por essas duas frases que citei acima.
Morando aqui, comecei a compreender que muitas coisas que não faziam muito sentido para mim, talvez pudessem ser entendidas se eu encontrasse na história e nos costumes algo para justificar o porquê dessa ou daquela atitude. Sendo assim, a primeira história que fui tirar a limpo foi essa de matarem meninas. Li um texto da Chris, no seu blog China na Minha Vida, e lá ela falou sobre um livro que tratava do assunto, corri atrás do tal livro e, finalmente, achei nele muitas respostas.
O livro se chama “Mensagem de Uma Mãe Chinesa Desconhecida”, e ele traz a narrativa de uma jornalista que percorreu lugares remotos da China e recolheu histórias de mulheres que tiveram suas filhas mortas ou arrancadas delas, logo após o nascimento. Impossível ler cada um dos capítulos sem se emocionar, sem sentir um pouco da dor de cada mãe que teve sua filha arrancada de seus braços e levada.
Nesse texto, quero apenas fazer com que mais pessoas possam entender o que está por trás desse costume; entender que atrás de cada menina que foi levada ou morta, existe uma mãe ferida, que ainda chora e ainda nutre esperanças de reencontrá-la algum dia.
Vamos voltar um pouco no tempo, para entendermos de onde vem esse costume. O sistema de distribuição de terra nas aldeias chinesas na década de 1920 ainda seguia os mesmos padrões de 2000 anos atrás, ou seja, os oficiais encarregados não davam um pedaço de terra a mais, caso nascesse uma menina e, além disso, os grãos para plantio eram distribuídos de acordo com a quantidade de pessoas na família, sendo que meninas não contavam.
Logo, se você tivesse várias meninas, não teria terra, nem grãos suficientes para plantar, podendo morrer de fome. Um outro grande engano é achar que a política do “filho único” foi a responsável pela morte das meninas, quando, na verdade, isso já acontecia desde muito antes dessa política, que só começou a ser adotada no fim da década de 1970.
O que acontecia, então, era que existia uma grande expectativa em torno do nascimento para que chegasse um bebê do sexo masculino. A família geralmente se reunia e, enquanto a mulher dava à luz no quarto, os outros esperavam ansiosos pela descoberta do sexo. Cada vez que vinha uma menina, a sogra ou a parteira ou a própria mãe seriam as responsáveis por “resolver o bebê”, como assim chamavam. Uma vasilha com água era preparada para o momento do nascimento e, caso fosse um menino, a água seria usada para o primeiro banho e, se fosse uma menina, usavam a água para afogá-la.
Nem sempre essas meninas eram mortas. Acontecia de, algumas vezes, a mãe e o pai pagarem um dinheiro extra para a parteira, sem que os avós soubessem, para que ela levasse a recém-nascida para um orfanato, ou para outra cidade. Não bastasse tudo o que essas mães viviam pelo simples fato de darem à luz, de terem que abandonar ou matar suas meninas, toda a culpa era jogada sobre elas: as chamavam de inúteis, eram hostilizadas e por vezes abandonadas pelos maridos e deixadas ao léo. Muitas mulheres por não terem para onde ir, pois não poderiam voltar para a casa deu seus pais e serem uma vergonha para eles, e por não terem como se sustentar, acabavam cometendo suicídio.
Alguns casais ficavam se mudando de uma cidade para outra, na tentativa de fugirem do governo e do controle de natalidade que já havia se instalado, para que pudessem ficar tentando ter um menino e voltarem para casa orgulhando seus pais. Em meio a essas tentativas, as meninas que nasciam eram abandonadas nas cidades por onde passavam.
Mas, voltando à pergunta do início do texto, é com grande tristeza que digo que sim, ainda matam meninas chinesas. Acredito que não na mesmo proporção de antigamente, mas, sim, a prática ainda existe e, com toda certeza, assim como antigamente, no interior é mais comum.
Há algumas semanas conversávamos com um colega brasileiro que trabalha em uma fábrica chinesa, aqui em Ningbo, e ele disse que uma funcionária da fábrica abortou aos 7 meses de gestação, por saber que estava esperando uma menina e os sogros não aceitariam. Também já ouvi de uma mãe de aluno que já tinha duas meninas que se o terceiro não fosse menino, ela abortaria. É importante ressaltar que é proibido ao médico revelar o sexo do bebê por essas questões, porém, em alguns casos, dependendo do grau de proximidade do médico com a paciente, ele fala.
Na época das aulas de geografia eu sempre pensava que essas mães eram muito ruins, que não tinham coração, mas hoje consigo compreender que, por mais que seja um costume inaceitável, a maior parte dessas mães não fazia por maldade, ou por não amar suas filhas, mas porque elas não tinham outra opção. Ofereço, então, a minha empatia e preces a cada umas dessas mães chinesas desconhecidas.
E o porque de fazer esse blog, é para que muitos tenham conhecimento do que se passa no mundo,de que apenas dos pesares moramos num país abençoado,onde somos livres.
A escritora e jornalista Xinran quis saber por que tantas
 mães chinesas abandonam as suas filhas. 
A política de filho único juntou-se a uma tradição milenar
 e as meninas continuam, frequentemente, sem ter lugar na família
Não foi preciso ter uma unha da mão pintada de encarnado 
 (uma apenas) para conversar longamente com Xinran. 
Explicando: há anos que a escritora e jornalista adotou este 
estratagema para desencadear a conversa com as mulheres chinesas,
 habitualmente discretas e silenciosas sobre a sua vida pessoal. 
Despertando-lhes a curiosidade, acabava por arranjar 
forma de responder à sua.


Xinran aparece para a entrevista, na esplanada de um hotel em Lisboa, com um vestido de cetim preto, bordado com discretos contornos de flores, cabelo apanhado, 
baton suave e, sim, uma e apenas uma unha pintada.
A jornalista tornou-se famosa com um programa de rádio 
que relatava aquilo que lhe era contado como uma confidência.
 Histórias de mães e filhas, muitas histórias, que de 
alguma forma eram também a sua.
 O que uma mulher diz a outra pode dar um livro 
(no seu caso deu mais que um). Mensagem de uma Mãe 
Desconhecida (Bertrand), que Xinran veio agora lançar a Portugal,
 tenta responder a uma pergunta que lhe fizeram muitas vezes
 e que ela própria também fazia: porque é que a minha mãe não me 
quis?
No seu caso, a resposta talvez ainda não tenha chegado.
 Nasceu em Pequim, em 1958, numa família que "perdeu tudo o que
 tinha" com o regime comunista.
 A mãe, como muitas mulheres na altura, 
entregou-se ao partido, e aos três meses Xinran já vivia com os avós.
A Revolução Cultural (1966-1976) não poupou nenhum
 dos seus familiares, por mais fervoroso que fosse o apoio ao
regime de Mao Tsetung. Xinran nunca soube o que aconteceu
 à mãe 
durante os dez anos que esteve presa -
 e que mais de três décadas depois nada conta.
 Mas não esquece o terror da prisão para onde foi
 mandada quando ainda nem tinha completado os sete anos.
"Não tinha direito a falar nem a brincar. 
Todas as noites os guardas-vermelhos apareciam, agarravam
 numa criança (éramos 14), tapavam-lhe a boca com a mão,
 levavam-na para a sala ao lado e depois espancavam-na. 
Para uma criança deitada no chão, 
era uma sombra gigantesca e escura que aparecia... 
Ainda hoje tenho medo. E eu pensava sempre:
 "É a minha vez, é a minha vez, é a minha vez"."
Da prisão foi para a universidade militar.
 Nunca se reaproximou o suficiente da mãe para receber
um abraço dela, apesar de ainda hoje se verem esporadicamente. 
"No fundo, sou órfã."
Xinran não consegue explicar por que foi abandonada. 
Mas quis encontrar a resposta para outros casos,
 como o da menina de cinco anos, adotada por ocidentais, 
que uma vez veio ter com ela para lhe perguntar por que a mãe
 a tinha deixado.
Há explicações possíveis, como, por exemplo,
 uma prática com milênios que faz com que as famílias prefiram 
os rapazes às moças. 
O livro arranca com um número: no final de 2007, 
havia em todo o mundo 120 mil órfãos chineses, quase todos 
meninas. Muitas têm um destino ainda pior.
"De repente, pareceu-me ouvir um ligeiro movimento do balde 
que se encontrava atrás de mim e automaticamente olhei
 na sua direção. Não podia acreditar no que estava a ver. 
Para o meu completo horror, 
vi um pezinho minúsculo que saía do balde. 
Depois o pezinho estremeceu. Não era possível.
 A parteira tinha de ter deitado aquele bebé minúsculo vivo
 no balde".


A história relatada em Mensagem... passou-se em 1989, numa aldeia próxima das margens do rio Amarelo, onde - como em muitos outros locais rurais da China - era suposto "tratar-se" dos bebés meninas. Ou seja, matá-las à nascença.
Passaram-se mais de 20 anos e o país deu um grande salto com três décadas
 de abertura econômica e o crescimento das zonas urbanas.
 Mas nem tudo mudou. "Depois de três mil anos, tendo passado 
por tantos regimes diferentes e sistemas políticos diversos, até
o comunismo, o sistema ainda é usado", 
conta a escritora ao P2.
"Tratar" das meninas ainda "faz parte das tarefas domésticas". 
Poderá até parecer uma rotina, mas não vem sem dor, 
como se vê pelos testemunhos que reuniu no seu livro.
Xinran mostra a fotografia de uma espécie de balde em madeira, 
vermelho, formado por duas partes: 
"Em Dezembro, fui a um local onde vi um objeto semelhante a este, 
mas que naquela zona do rio Amarelo é castanho e tem uma forma 
mais quadrada. Se formos a uma cozinha de camponeses, estará lá, 
num canto. Se perguntarmos para que é aquilo, dirão que é para 
o lixo. Mas se perguntarmos a uma mulher grávida, ela treme,
 fica nervosa. Muito nervosa. Quando nascem as meninas,
 serve para encher de água quente na parte de baixo e tapa-se 
com a outra parte. As parteiras põem-nas logo ali em água.
 Se for um rapaz, não se tapa, serve para o primeiro banho. 
É uma peça de mobiliário que continua ali."
Esta preferência por rapazes não é uma particularidade da China
 - nos países em desenvolvimento, o trabalho manual pesado
 é fundamental para sobreviver, e os rapazes fazem-no
 com mais facilidade, realça. Mas há no país um sistema ancestral 
de distribuição de terras que persiste até hoje. As famílias com
 rapazes recebem terrenos maiores para cultivar.
 Os homens são por isso a fonte de riqueza. 
A política de filho único, aplicada desde a década de 1980,
 não veio ajudar. O novo censos de 2010, 
publicado no final do mês passado, mostra que na China
 nascem 118 rapazes por cada 100 moças
 (o normal seria 105-107 rapazes por cada 100 meninas
).
 "Nos lugares onde não se compreende exatamente o 
significado de controlo da natalidade, o abandono
 dos recém-nascidos é apenas mais uma lei da natureza", escreveu.
 "Se a criança a mais que a família não consegue criar for um rapaz, 
ele é frequentemente adotado por outra família ou vendido.
 Para as meninas, a morte é quase inevitável."
"Desde que se tinham casado, ele e a mulher 
tinham andado sempre em fuga. Quando a mulher se encontrava
 grávida de três meses, os pais sugeriram-lhe que mudassem
 de terra, porque... no caso de se tratar de uma menina,
 as pessoas da aldeia nunca viriam a saber que ela tinha nascido.
 A última coisa que os pais lhe disseram antes de partir foi:
 "Não voltes a casa, a não ser que nos tragas um neto"... 
"Na estrada ou nos caminhos-de-ferro, por toda a China 
deixamos quatro filhas... Uma mulher que não tenha um filho
 não tem razões para viver"."
Xinran conta ao P2 que no final do ano passado esteve
 a viajar pela China - "Norte, Ocidente e Sul". "Apercebi-me que
 o equilíbrio a nível nacional não é problemático. No interior,
 quando as famílias começam por ter um filho, podem continuar
 a ter meninas e não controlam a natalidade". 
Mas as zonas entre as grandes cidades e as zonas rurais "
são o problema maior".
Isto porque - e ao contrário do que acontece nas cidades
 - ainda têm "crenças fortes sobre as tradições: os rapazes são o
 pilar da família". "Também foram influenciados pela tecnologia 
moderna e usam-na para escolher o sexo. E é mais fácil livrarem-se
 das meninas. Não as matam, mas estão a bani-las, 
enviam-nas ou para as cidades ou para orfanatos."
O novo censos revela que já 49 por cento dos chineses
 vivem nas cidades. Xinran fala, contudo, em 70
 por cento de uma população rural. 
"O número do Governo baseia-se no local onde as pessoas vivem.
 O meu baseia-se onde cresceram e foram educadas. 
Se cresceram numa família de camponeses, ainda têm um estilo 
de vida rural. Não é por se viver na cidade que se é urbano."
A industrialização fez aumentar substancialmente a população
 migrante. As mulheres que saem de casa para viver nas
 cidades poderiam até ter mais possibilidades de fugir às pressões
 para terem um rapaz. Nem sempre acontece.
"Muitas pessoas nas aldeias, quando matam as suas meninas,
 acham que é normal. É como as estações, a matança dos animais, 
nada de especial. Quando vêm para a cidade e vêem que lá as
 famílias ficam com as suas filhas, dão-lhes uma boa vida,
 sentem uma enorme dor com o que fizeram."
Em 2002, um relatório da ONU dizia que a China era
 o país do mundo onde mais mulheres se suicidavam.
 "As pessoas não conseguiam entender porquê. 
A vida estava a melhorar, as mulheres estavam a
 receber instrução."
Mas é também a partir daqui que a mudança se torna possível. 
"Escrevi ao Governo chinês a dizer que devia apoiar aquelas 
mulheres que deixam as aldeias para trabalhar nas cidades
 porque a sua instrução, cuidados de saúde, educação vão depois ser
passados para os locais de onde vieram. Já se vê isto em toda a parte". Ou seja,
 o apoio dado a uma mulher irá produzir efeitos nos outros
 membros da família, mesmo que tenham ficado nas áreas
 remotas do país. Os hábitos começam a reverberar. 
"Fui a uma aldeia no Sul da China e um homem disse-me: 
"Agora, já deixo a minha neta comer
 comigo à mesa". Estava muito orgulhoso. Eu perguntei-lhe 
de onde lhe tinha vindo essa ideia. E ele respondeu que foi 
depois de a sua nora ter regressado da cidade. Este tipo de
 melhorias, aos poucos e poucos, geração a geração,
 funciona mesmo."
Por isso, estas mulheres que desafiam as dificuldades
 "estão a fazer a história contemporânea chinesa", diz.
Xinran só uma vez foi publicada em chinês, com Mulheres da China,
 que resulta de várias entrevistas que fez ao longo da sua carreira.
 "Mas ao fim de três meses proibiram." Tinha vendido 24 mil 
exemplares.
Muitos não gostaram do retrato que traça. 
"Disseram-me que estou a fazer as mulheres chinesas perderem
 a face porque não mostro as mulheres ricas e poderosas...
 O problema da China de hoje é que as pessoas não dão aos 
camponeses o mesmo valor que dão às pessoas das cidades",
 afirma. "O Partido Comunista não destruiu nem as classes sociais,
nem o sistema imperial. Aonde quer que vamos,
vemos o sistema de classes muito presente."

"Se fosse a minha mãe, o que me diria? Culparia a época
 em que vivíamos, como faz toda a gente? É mesmo a "época"
 que nos leva a fazer as coisas? Aquela época é, afinal de contas, 
a história das pessoas. Eu sei que há muitas respostas possíveis, 
porque as pessoas são todas diferentes, mas eu quero que a 
minha mãe me responda como mãe."

Continua...

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